31 de agosto de 2009

Nada a fazer amor, eu sou do bando



















Nada a fazer amor, eu sou do bando
impermanente das aves friorentas;
e nos galhos dos anos desbotando
já as folhas me ofuscam macilentas;

e vou com as andorinhas. Até quando?
À vida breve não perguntes: cruentas
rugas me humilham. Não mais em estilo brando
ave estroina serei em mãos sedentas.

pensa-me eterna que o eterno gera
quem na amada o conjura. Além, mais alto,
em ileso beiral, ai espera:

andorinha indemne ao sobressalto
do tempo, núncia de perene primavera.
confia. eu sou romântica. Não falto.

Natália Correia

Encontro Inesperado

















É possível que não tenhas dado conta. Mas
ontem, por um instante, estive quase
a embebedar-me por te ver. (Que espécie
de álcool haverá no teu olhar
pergunto-me, procurando
recordar a hora, aquela mesa,
com um par de cafés, e a magra
longitude das tuas mãos). Não, não tenhas medo,
que não te farei a corte: não poderia
correr tanto
risco:
Como tantas
vezes consegui demonstrar,
sou muito cobarde, amiga.

Victor Botas

Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada





















Cheguei. Chegaste. Vinhas fatigada
e triste, e triste e fatigado eu vinha.
Tinhas a alma de sonhos povoada,
e alma de sonhos povoada eu tinha.

E parámos de súbito na estrada
da vida: longos anos, presa à minha
a tua mão, a vista deslumbrada
tive da luz que teu olhar continha.

Hoje, segues de novo... Na partida,
nem o pranto os teus olhos humedece,
nem te comove a dor da despedida.

E eu, solitário, volto a face e tremo,
vendo o teu vulto que desaparece
na extrema curva do caminho extremo.

Olavo Bilac

(sem título)


Porque eu sou a Morte quando dou colo à tua desistência. Porque eu sou a Vida quando te golpeio a carne entorpecida com o gume que não te deixa adormecer.

Goldmundo, no seu Diário

Prostituição auditiva


Gauguin, "Prostituição"

O português gostava era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas só para ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar sem sexo e sem nexo. O tuga, militar até aos botões, só queria que a prostituta falasse.
- Mas falar o quê?
A primeira noite ainda a moça perguntou. Depois entendeu que ele gostava era de nenhumices, simples perfume de sílabas. O homem estaria ali por livre e não espontânea vontade? Enfins, coisas de branco.
-Vocês, as pretas, não são como as nossas mulheres.
-Como não somos?
-Vocês falam com o sangue.
Mariana ainda insistiu em namoriscar, remexendo as carnes, toda ela oferecível. Mas ele nada. Ficava quieto, só os olhos desembarcavam no corpo dela. A prostituta até se ofendia com aquela inactuância do macho. Seria porque ela não apresentava tatuagens, como os homens de sua raça requeriam? Mulher sem riscos na flor da pele é mulher escorregadiça. Esse é o mandamento da tradição. Mas parece não era.
-É escusado, Mariana. Eu não toco em preta. Fui educado assim.
-Ao menos me espalhe um creme, mezungo.
-Um creme?
-É que nós, pretas, secamos mais que lagartos. É a nossa raça, me faça um favor.
Mas ele recusava, nem pele nem óleo. Alergia a gorduras, justificava já em antecipado arrepio. Ela, então, a si mesma se besuntava. Demorava os finos dedos nas intimidades, escorria sensualidade pelas reentrâncias. Depois, já bem abrilhantadinha, ela se rebolinava à frente do militar lusitano.
-Ainda você não me quer?
Negativo. Mariana, já sem fogo, deitava em esteira e palavreava sem fim. No colchão rasteiro, o portuga adormecia. Ela ainda ficava falando por um tempo, até se certificar que ele descera às profundezas.
Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários. Ela amarfanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as notas e dizia:
- Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas.
Ela sorria, sem entender o repuxado português, quem sabe era um simples lusofolia. Ao despedir-se a mulher sempre insistia em lhe perguntar o nome, apelido de sua existência. Mas ele suavemente se desleixava: nunca, nem jamais.
-Meu nome? Não interessa, não te interessa.
Ele não queria, não podia, não devia. Branco que frequenta as negras não leva sobrenome. É um soldado, ponto final. E colocando um dedo ríspido sobre os lábios de Mariana chegou mesmo a ameaçar: que nunca mais ela se atrevesse a querer saber da identidade dele.
Até que certa noite a prostituta se apresentou afónica, enguiçada nas cordas.
-Hoje não tenho palavra para lhe dar, soldado.
Foi murmúrio único. Ele se sentou. Sentiu, antecipada, a carência da voz dela. Nunca concebeu que a falta desse reconforto lhe viesse a doer tanto. Olhou para Mariana, estranhando. Canoa se inventou antes do rio? O militar de aprontou em serviço de cozinha. Instantaneou um chá, desses curadouros de garganta. Mariana se consolou mais com o gesto dele que com o remédio. Rodou a chávena de alumínio enquanto olhava para nada:
- É que bateram em Helena. Mataram ela!
-Quem é essa, a Helena?
-Era uma outra colega.
Ela dobrou as costas, chorando. O militar se sentou por trás dela e lhe falou. Com voz de mar, suas palavras eram vagas que nunca encontravam praia. E contou-lhe da sua tristeza. Sim, ele também sabia o que era ver morrer um colega. E se perguntava, tal como ela:
-Que faço eu no meio disto tudo? Esta guerra, de quem é esta guerra?
A prostituta deu por ele limpando o rosto na manga. Uma furtiva tristeza, véspera de lágrima? Entendeu tocar-lhe no cabelo, esse cabelo fino que faz com que os brancos aparentem bonecos de brincar. Mas já o português pegava na caixinha do creme.
-Deixa, eu te esfrego, Mariana.
Ela sobrancelhou uma surpresa. Ele aceitava tocar-lhe? Voltou a sentar, oferecendo as costas. A mão dele sonhou, divagante e devagarosa. Os dedos recheados de óleo pareciam chuva escorrendo sobre água. Mariana sentia o aconchego dele.
E eles, muito ambos, aconteceram-se. O soldado escutou, pela primeira vez, o sotaque do corpo dela. O mundo a perder de vistas, o rio perdendo suas margens. No final, bem no fim de tudo, ele se estendeu na esteira e, olhando para além do tecto, disse:
-Sou Raimundo, o major Raimundo!

Mia Couto

Que nenhuma estrela queime o teu perfil





















Que nenhuma estrela queime o teu perfil
Que nenhum deus se lembre do teu nome
Que nem o vento passe onde tu passas.

Para ti criarei um dia puro
Livre como o vento e repetido
Como o florir das ondas ordenadas.

Sophia de Mello Breyner Andresen

Amar, Ensinar, Criar


Não se lavra a terra que não quer ser semeada. Porque a terra pode querer ser apenas pedra e estar ali, estéril no granítico silêncio de cinzas. Porque a terra pode querer apenas pousio e descansar ali, exaurida no ronco de tréguas. Mas quando a terra grita e exibe o seu ventre de húmus e se entrega, então que venha o arado e depois a semente e depois a água e depois o estrume e que da festa fecunda nasça o que a terra nos der.

Goldmundo, no seu Diário

O Menino Que Fazia Versos



- Ele escreve versos!
Apontou o filho, como se entregasse criminoso na esquadra. O médico levantou os olhos, por cima das lentes, com o esforço de alpinista em topo de montanha.
- Há antecedentes na família ?
- Desculpe, doutor ?
O médico destrocou-se por tintins, Dona Serafina respondeu que não. O pai da criança, mecânico de nascença e preguiçoso por destino, nunca espreitara uma página. Lia motores, interpretava chaparias. Tratava-a bem, nunca lhe batera mas a doçura mais requintada que conseguira tinha sido em noite de núpcias:
- Serafina, você hoje cheira a óleo Castrol.
Ela hoje até se comove com a comparação. Sim, perfume de igual qualidade qual outra mulher pode sequer sonhar ? Pobres que fossem os dias, para ela, tinham sido lua-de-mel. Para ele, período de rodagem. O filho fora confeccionado nesses namoros de unha suja, restos de combustível manchando o lençol. E oleosas confissões de amor.
Tudo corria sem mais, a oficina mal dava para o pão e a escola do miúdo. Mas eis que começam a aparecer, pelos recantos da casa, papeis rabiscados com versos. O filho confessou, sem pestanejo, a autoria do feito.
- São meus versos, sim.
O pai logo sentenciara: havia que tirar o miúdo da escola. Aquilo era coisa de estudos a mais, perigosos contágios, más companhias. Pois o rapaz, em vez de se lançar no esfrega-refrega com as meninas se acabrunhava nas penumbras e, pior ainda, escrevia versos. O que se passava: mariquice intelectual ? Ou carburador entupido, avarias dessas que a vida do homem se queda em ponto morto ?
Dona Serafina defendeu o filho e os estudos. O pai, conformado, exigiu: então, ele que fosse examinado.
- O médico que faça revisão geral, parte mecânica, parte eléctrica.
Queria tudo. Que se afinasse o sangue, calibrasse os pulmões, e sobretudo lhe espreitassem o nível do óleo na figadeira. Houvesse que pagar por sobressalentes, não importava. O que urgia era por cobro àquela vergonha familiar.
Olhos baixos, o médico escutou tudo, sem deixar de escrevinhar num papel. Aviava já a receita para poupança de tempo. Com enfado, o clínico se dirigiu ao menino:
- Dói-te alguma coisa ?
- Dói-me a vida, doutor.
O doutor suspendeu a escrita. A resposta, sem dúvida, o surpreendera. Já Dona Serafina aproveitava o momento: está a ver, doutor ? Está ver ? O médico voltou a erguer o olhos e a enfrentar o miúdo:
- E o que fazes quando te assaltam essas dores ?
- O que melhor sei fazer, excelência, é sonhar.
Serafina voltou à carga e sapateou a nuca do filho. Não lembrava o que pai lhe dissera sobre os sonhos ? Que fosse sonhar longe ! Mas o filho reagiu: longe, porquê ? Perto, o sonho aleijaria alguém ? O pai teria, sim, receio de sonho. E riu-se, acarinhando o braço da mãe.
O médico estranhou o riso. Custava a crer, visto a idade. Mas o moço, voz tímida, foi-se anunciando. Que ele, modéstia apartada, já inventara sonhos desses que já nem há, só no antigamente, coisa de bradar à terra. Exemplificaria, para melhor crença. Mas nem chegou a começar. O doutor o interrompeu:
- Não tenho tempo, moço, isto aqui não é nenhuma clínica psiquiátrica.
A mãe, em desespero, pediu clemência. O doutor que desse ao menos uma vista de olhos pelo caderninho dos versos. A ver se ali catava o motivo de tão grave distúrbio. Contrafeito, o médico aceitou e guardou o manuscrito na gaveta. A mãe que viesse na próxima semana. E trouxesse o paciente.
Na semana seguinte foram os últimos a serem atendidos. O médico, sisudo, taciturneou: o miúdo não teria, por acaso, mais versos ? O menino não entendeu.
- Não continuas a escrever ?
- Isto que faço não é escrever, doutor. Estou, sim, a viver. Tenho esse pedaço de vida - disse, apontando um novo caderninho - quase a meio.
O médico chamou a mãe, à parte. Que aquilo era mais grave do que se poderia pensar. O menino carecia de internamento urgente.
- Não temos dinheiro, fungou a mãe entre soluços.
- Não importa, respondeu o doutor.
Que ele mesmo assumiria as despesas. E que seria ali mesmo, na sua clínica que o menino seria sujeito a devido tratamento.
Hoje quem visita o consultório raramente encontra o médico. Manhãs e tardes ele se senta num recanto do quarto de internamento do menino. Quem passa pode escutar a voz pausada do filho do mecânico que vai lendo, verso a verso, o seu próprio coração.
Mia Couto

(sem título)











Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz será
como a do vento sobre a areia:
um som inútil de encontro ao silêncio.

Não responderei ao teu apelo,
embora ardentemente o deseje.
O lugar onde moro é um obscuro
lugar de pedra e mudez:

não há palavras que o alcancem.
gelam-lhe os gritos por fora.
Serei como as areias que escutam
o vento e apenas estremecem.

Gritarás o meu nome em ruas
desertas e a tua voz ouvirá
o próprio som sem entender,
como o vento, o beijo da areia.

Teu grito encontrará somente
a angústia do grito ampliado,
vento e areia. Gritarás o meu
nome em ruas desertas.

Rui Knopfli

Do rio que tudo arrasta











Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem

Bertold Brecht

Devias estar aqui rente aos meus lábios













Devias estar aqui rente aos meus lábios
para dividir contigo esta amargura
dos meus dias partidos um a um

- Eu vi a terra limpa no teu rosto,
Só no teu rosto e nunca em mais nenhum.

Eugénio de Andrade

Deixei de ouvir-te













Deixei de ouvir-te. E sei que sou
mais triste com o teu silêncio.

Preferia pensar que só adormeceste; mas
se encostar ao teu pulso o meu ouvido
não escutarei senão a minha dor.

Deus precisou de ti, bem sei. E
não vejo como censurá-lo

ou perdoar-lhe.

Maria do Rosário Pedreira

30 de agosto de 2009

As tuas asas



Não te percas
deixa que seja eu
a segurar-te

... as asas!

Maria Teresa Horta, Só de Amor

Dúvida













Não derretas a manteiga
sobre o pão
nem procures o pão
pela cozinha

Nem queiras saber
qual a razão
pela qual o amor
se aproxima

Não adormeças
deitado sobre a mão
nem faças com a mão
uma arma de esgrima

Pois logo cais em ti
e porque não?
Vais tropeçar na dúvida
que domina

Maria Teresa Horta, Só de amor

Infiel



Serei
inconstantemente à tua
boca

Infiel de mim própria
à tua imagem

Maria Teresa Horta, Só de Amor

Os silêncios
















Não entendo os silêncios
que tu fazes
nem aquilo que espreitas
só comigo

Se escondes a imagem
e a palavra
e adivinhas aquilo
que não digo

Se te calas
eu oiço e eu invento
Se tu foges
eu sei não te persigo

Estendo-te as mãos
dou-te a minha alma
e continuo a querer
ficar contigo.

Maria Teresa Horta, Só de Amor

Rotina
















Ao abrir a janela do quarto para outras
janelas de outros quartos, ao veres a rua que desemboca
noutras ruas, e as pessoas que se cruzam, no início da
manhã, sem pensarem com quem se cruzam
em cada início de manhã, talvez te apeteça
voltar para dentro, onde ninguém te espera. Mas
o dia nasceu - um outro dia, e a contagem do tempo
começou a partir do momento em que
abriste a janela, e em que todas as janelas
da rua se abriram, como a tua. Então, resta-te
saber com quem te irás cruzar, esta manhã: se
o rosto que vais fixar, por uns instantes, retribuirá
o teu gesto; ou se alguém, no primeiro café que
tomares, te devolverá a mesma inquietação
que saboreias, enquanto esperas que o líquido
arrefeça.


Nuno Júdice, Pedro, lembrando Inês