20 de janeiro de 2010

(sem título)

Só tu
sabes sorrir
na vertical

Lótus



Não te esqueças de proteger os ouvidos. Porque
algumas horas depois o som de uma pétala
ao cair no chão era capaz de te
rebentar os tímpanos.
.
Jorge de Sousa Braga

O guarda-rios


É tão difícil guardar um rio
quando ele corre
dentro de nós.
.
Jorge de Sousa Braga
.

Os dentes de leão


Os dentes de leão
adoram trincar
minúsculos grãos de pólen.
.
Jorge de Sousa Braga

15 de janeiro de 2010

excerto


Quadro de Nicoletta Tomas Caravia


Sabemos muito poucas coisas, mas a certeza de que devemos sempre preferir o difícil não nos deve abandonar. É bom estar só, porque a solidão é difícil, razão mais forte para a desejar. Amar também é bom porque o amor é difícil. O amor de um ser humano por outro é talvez a experiência mais difícil para cada um de nós, o mais alto testemunho de nós próprios, a obra suprema em face da qual todas as outras são apenas preparações. É por isso que os seres muito novos, novos em tudo, não sabem amar e precisam de aprender. Com todas as forças do seu ser, concentradas no coração ansioso e solitário, aprendem a amar. Toda a aprendizagem é um tempo de clausura. Assim, para o que ama, durante muito tempo e até ao largo da vida, o amor é apenas solidão, solidão cada vez mais intensa e mais profunda. O amor não consiste nisto de um ser se entregar, se unir a outro logo que se dá o encontro. (Que seria a união de dois seres ainda imprecisos, inacabados, dependentes?). O amor é a ocasião única de amadurecer, de tomar forma, de nos tornarmos um mundo para o ser amado. É uma alta exigência, uma ambição sem limites, que faz daquele que ama um eleito solicitado pelos mais vastos horizontes. Quando o amor surge, os novos apenas deviam ver nele o dever de se trabalharem a si próprios. A faculdade de nos perdermos noutro ser, de nos darmos a outro ser, todas as formas de união, ainda não são para eles. Primeiro é preciso amealhar muito tempo, acumular um tesoiro.


Rainer Maria Rilke

13 de janeiro de 2010

Soror Mariana - Beja


Cortaram os trigos. Agora
A minha solidão vê-se melhor


Sophia de Mello Breyner Andresen

11 de janeiro de 2010

casa


Tentei fugir da mancha mais escura
que existe no teu corpo, e desisti.
Era pior que a morte o que antevi:
era a dor de ficar sem sepultura.

Bebi entre os teus flancos a loucura
de não poder viver longe de ti:
és a sombra da casa onde nasci,
és a noite que à noite me procura.

Só por dentro de ti há corredores
e em quartos interiores o cheiro a fruta
que veste de frescura a escuridão. . .

Só por dentro de ti rebentam flores.
Só por dentro de ti a noite escuta
o que sem voz me sai do coração.


David Mourão Ferreira

8 de janeiro de 2010

Labirinto ou não foi nada





















Imagem: Ismael Nery, "Os Namorados"

Talvez houvesse uma flor
aberta na tua mão.
Podia ter sido amor,
e foi apenas traição.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua. . .
Ai de mim, que nem pressinto
a cor dos ombros da Lua!

Talvez houvesse a passagem
de uma estrela no teu rosto.
Era quase uma viagem:
foi apenas um desgosto.

É tão negro o labirinto
que vai dar à tua rua...
Só o fantasma do instinto
na cinza do céu flutua.

Tens agora a mão fechada;
no rosto, nenhum fulgor.
Não foi nada, não foi nada:
podia ter sido amor.

David Mourão Ferreira

4 de janeiro de 2010

se te pergunto o caminho, falas-me das rochas
















Se te pergunto o caminho, falas-me das rochas
que mortificam o dorso das montanhas; e do ranger
da água no galope dos rios; e das nuvens que coroam
as paisagens. Contas que a noite geme nas fendas

dos penhascos porque as cidades apodreceram junto
às margens; que o vento é um chicote que desaba
os chapéus; que terra treme; que o nevoeiro cega; e
que as casas onde o medo se extinguia na longa bainha do
vestido da mãe cederam ao peso das mágoas dentro delas.

E, se mesmo assim quero ir, dizes que os meus passos
se perderiam no comprimento das sombras ― que não há
mapas para os sonhos de quem morre de amor; e que
os ramos debruçados dos muros das ruínas rasgariam
a carne ― como um sorriso rasga o tecido de um rosto.

Se não me amas, porque me avisas assim da dor?

Maria do Rosário Pedreira

2 de janeiro de 2010

a árvore





















Chegaste
com a tua tesoura de jardineiro
e começaste a cortar:
umas folhas aqui e ali
uns ramos
que não doeram…
Eu estava desprevenida
quando arrancaste a raiz.

Yvette Centeno

Um Adeus Português

















Kimia Ferdowi, 'Ferraby Lionheart'


Nos teus olhos altamente perigosos
vigora ainda o mais rigoroso amor
a luz dos ombros pura e a sombra
duma angústia já purificada
Não tu não podias ficar presa comigo
à roda em que apodreço
apodrecemos
a esta pata ensangüentada que vacila
quase medita
e avança mugindo pelo túnel
de uma velha dor

Não podias ficar nesta cadeira
onde passo o dia burocrático
o dia-a-dia da miséria
que sobe aos olhos vem às mãos
aos sorrisos
ao amor mal soletrado
à estupidez ao desespero sem boca
ao medo perfilado
à alegria sonâmbula à vírgula maníaca
do modo funcionário de viver

Não podias ficar nesta casa comigo
em trânsito mortal até ao dia sórdido
canino
policial
até ao dia que não vem da promessa
puríssima da madrugada
mas da miséria de uma noite gerada
por um dia igual

Não podias ficar presa comigo
à pequena dor que cada um de nós
traz docemente pela mão
a esta pequena dor à portuguesa
tão mansa quase vegetal

Mas tu não mereces esta cidade não mereces
esta roda de náusea em que giramos
até à idiotia
esta pequena morte
e o seu minucioso e porco ritual
esta nossa razão absurda de ser

Não tu és da cidade aventureira
da cidade onde o amor encontra as suas ruas
e o cemitério ardente
da sua morte
tu és da cidade onde vives por um fio
de puro acaso
onde morres ou vives não de asfixia
mas às mãos de uma aventura de um comércio puro
sem a moeda falsa do bem e do mal

Nesta curva tão terna e lancinante
que vai ser que já é o teu desaparecimento
digo-te adeus
e como um adolescente
tropeço de ternura
por ti


Alexandre O'Neill

Dá-me a tua mão




















Dá-me a tua mão:
Vou agora te contar
como entrei no inexpressivo
que sempre foi a minha busca cega e secreta.

De como entrei
naquilo que existe entre o número um e o número dois,
de como vi a linha de mistério e fogo,
e que é linha sub-reptícia.

Entre duas notas de música existe uma nota,
entre dois fatos existe um fato,
entre dois grãos de areia por mais juntos que estejam
existe um intervalo de espaço,
existe um sentir que é entre o sentir
- nos interstícios da matéria primordial
está a linha de mistério e fogo
que é a respiração do mundo,
e a respiração contínua do mundo
é aquilo que ouvimos
e chamamos de silêncio.

Clarice Lispector

Meu Deus, me dê a coragem





















Rodin, 'O Pensador'

Meu Deus, me dê a coragem
de viver trezentos e sessenta e cinco dias e noites,
todos vazios de Tua presença.
Me dê a coragem de considerar esse vazio
como uma plenitude.
Faça com que eu seja a Tua amante humilde,
entrelaçada a Ti em êxtase.
Faça com que eu possa falar
com este vazio tremendo
e receber como resposta
o amor materno que nutre e embala.
Faça com que eu tenha a coragem de Te amar,
sem odiar as Tuas ofensas à minha alma e ao meu corpo.
Faça com que a solidão não me destrua.
Faça com que minha solidão me sirva de companhia.
Faça com que eu tenha a coragem de me enfrentar.
Faça com que eu saiba ficar com o nada
e mesmo assim me sentir
como se estivesse plena de tudo.
Receba em teus braços
o meu pecado de pensar.

Clarice Lispector

Quero escrever o borrão vermelho de sangue





















Quero escrever o borrão vermelho de sangue
com as gotas e coágulos pingando
de dentro para dentro.
Quero escrever amarelo-ouro
com raios de translucidez.
Que não me entendam
pouco-se-me-dá.
Nada tenho a perder.
Jogo tudo na violência
que sempre me povoou,
o grito áspero e agudo e prolongado,
o grito que eu,
por falso respeito humano,
não dei.

Mas aqui vai o meu berro
me rasgando as profundas entranhas
de onde brota o estertor ambicionado.
Quero abarcar o mundo
com o terremoto causado pelo grito.
O clímax de minha vida será a morte.

Quero escrever noções
sem o uso abusivo da palavra.
Só me resta ficar nua:
nada tenho mais a perder.

Clarice Lispector

1 de janeiro de 2010

ao longe os barcos de flores





















Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranqüila,
- Perdida voz que de entre as mais se exila,
- Festões de som dissimulando a hora

Na orgia, ao longe, que em clarões cintila
E os lábios, branca, do carmim desflora...
Só, incessante, um som de flauta chora,
Viúva, grácil, na escuridão tranquila.

E a orquestra? E os beijos? Tudo a noite, fora,
Cauta, detém. Só modulada trila
A flauta flébil... Quem há-de remi-la?
Quem sabe a dor que sem razão deplora?

Só, incessante, um som de flauta chora...

 
Camilo Pessanha

até ao fim





















Mas é assim o poema: construído devagar,
palavra a palavra, e mesmo verso a verso,
até ao fim. O que não sei é
como acabá-lo; ou, até, se
o poema quer acabar. Então, peço-te ajuda:
puxo o teu corpo
para o meio dele, deito-o na cama
da estrofe, dispo-o de frases
e de adjectivos até te ver,
tu,
o mais nu dos pronomes. Ficamos
assim. Para trás, palavras e versos,
e tudo o que
não é preciso dizer:
eu e tu, chamando o amor
para que o poema acabe.

Nuno Júdice

nome

Em nome da tua ausência
Construí com loucura uma grande casa branca
E ao longo das paredes te chorei

Sophia de Mello Breyner