31 de agosto de 2009

Prostituição auditiva


Gauguin, "Prostituição"

O português gostava era de ouvir as pronúncias dela. Pagava notas só para ficar escutando a noite inteira. Mariana não tinha que fazer mais nada: só divagar, devagar sem sexo e sem nexo. O tuga, militar até aos botões, só queria que a prostituta falasse.
- Mas falar o quê?
A primeira noite ainda a moça perguntou. Depois entendeu que ele gostava era de nenhumices, simples perfume de sílabas. O homem estaria ali por livre e não espontânea vontade? Enfins, coisas de branco.
-Vocês, as pretas, não são como as nossas mulheres.
-Como não somos?
-Vocês falam com o sangue.
Mariana ainda insistiu em namoriscar, remexendo as carnes, toda ela oferecível. Mas ele nada. Ficava quieto, só os olhos desembarcavam no corpo dela. A prostituta até se ofendia com aquela inactuância do macho. Seria porque ela não apresentava tatuagens, como os homens de sua raça requeriam? Mulher sem riscos na flor da pele é mulher escorregadiça. Esse é o mandamento da tradição. Mas parece não era.
-É escusado, Mariana. Eu não toco em preta. Fui educado assim.
-Ao menos me espalhe um creme, mezungo.
-Um creme?
-É que nós, pretas, secamos mais que lagartos. É a nossa raça, me faça um favor.
Mas ele recusava, nem pele nem óleo. Alergia a gorduras, justificava já em antecipado arrepio. Ela, então, a si mesma se besuntava. Demorava os finos dedos nas intimidades, escorria sensualidade pelas reentrâncias. Depois, já bem abrilhantadinha, ela se rebolinava à frente do militar lusitano.
-Ainda você não me quer?
Negativo. Mariana, já sem fogo, deitava em esteira e palavreava sem fim. No colchão rasteiro, o portuga adormecia. Ela ainda ficava falando por um tempo, até se certificar que ele descera às profundezas.
Horas depois, ele se apressava a sair. Pagava os variáveis honorários. Ela amarfanhava os dinheiros no soutien. Já sabia o seguinte: antes de sair o branco lhe pedia para cheirar as notas, tomava-as como se fossem delicadas flores e nelas aspirava fundamente o cheiro do suor dela. Depois, tocava as notas e dizia:
- Eu transpiro para as ter, tu tem-las transpiradas.
Ela sorria, sem entender o repuxado português, quem sabe era um simples lusofolia. Ao despedir-se a mulher sempre insistia em lhe perguntar o nome, apelido de sua existência. Mas ele suavemente se desleixava: nunca, nem jamais.
-Meu nome? Não interessa, não te interessa.
Ele não queria, não podia, não devia. Branco que frequenta as negras não leva sobrenome. É um soldado, ponto final. E colocando um dedo ríspido sobre os lábios de Mariana chegou mesmo a ameaçar: que nunca mais ela se atrevesse a querer saber da identidade dele.
Até que certa noite a prostituta se apresentou afónica, enguiçada nas cordas.
-Hoje não tenho palavra para lhe dar, soldado.
Foi murmúrio único. Ele se sentou. Sentiu, antecipada, a carência da voz dela. Nunca concebeu que a falta desse reconforto lhe viesse a doer tanto. Olhou para Mariana, estranhando. Canoa se inventou antes do rio? O militar de aprontou em serviço de cozinha. Instantaneou um chá, desses curadouros de garganta. Mariana se consolou mais com o gesto dele que com o remédio. Rodou a chávena de alumínio enquanto olhava para nada:
- É que bateram em Helena. Mataram ela!
-Quem é essa, a Helena?
-Era uma outra colega.
Ela dobrou as costas, chorando. O militar se sentou por trás dela e lhe falou. Com voz de mar, suas palavras eram vagas que nunca encontravam praia. E contou-lhe da sua tristeza. Sim, ele também sabia o que era ver morrer um colega. E se perguntava, tal como ela:
-Que faço eu no meio disto tudo? Esta guerra, de quem é esta guerra?
A prostituta deu por ele limpando o rosto na manga. Uma furtiva tristeza, véspera de lágrima? Entendeu tocar-lhe no cabelo, esse cabelo fino que faz com que os brancos aparentem bonecos de brincar. Mas já o português pegava na caixinha do creme.
-Deixa, eu te esfrego, Mariana.
Ela sobrancelhou uma surpresa. Ele aceitava tocar-lhe? Voltou a sentar, oferecendo as costas. A mão dele sonhou, divagante e devagarosa. Os dedos recheados de óleo pareciam chuva escorrendo sobre água. Mariana sentia o aconchego dele.
E eles, muito ambos, aconteceram-se. O soldado escutou, pela primeira vez, o sotaque do corpo dela. O mundo a perder de vistas, o rio perdendo suas margens. No final, bem no fim de tudo, ele se estendeu na esteira e, olhando para além do tecto, disse:
-Sou Raimundo, o major Raimundo!

Mia Couto